Os primeiros passos da democracia em Arouca

29-05-2019

“Era uma vez um país / onde entre o mar e a guerra / vivia o mais infeliz / dos povos à beira-terra.” Foi desta forma que Ary dos Santos, em 1975, descreveu o Portugal antes do 25 de abril apresentando o povo lusitano numa das épocas mais negras da sua história.

As histórias de “Era uma vez” são, por norma, obras de ficção. Contudo esta foi a realidade de um país que vivia na penumbra da censura, na escuridão de muitos “nãos” e no isolamento internacional de um ditador que dizia comandar um “país grande”.

Abril e liberdade são duas palavras que raramente aparecem dissociadas em Portugal.

Abril mudou inevitavelmente a história nacional. Até então, o povo vivia reprimido, a atividade política estava controlada pelo sistema, uma guerra colonial sem precedentes era alimentada pelo regime e os direitos dos cidadãos não estavam salvaguardados pela Constituição. Não havia justiça e era utópico falar em liberdade.

Abril de 1974 mudou para sempre o rumo da história e embora a liberdade pudesse ser desde aí gritada, se presa durante 48 anos, a verdade é que as mudanças não foram simples e rápidas.

Informava a “Defesa de Arouca” que “A cultura de uma ideologia deixou de pertencer ao silêncio da clandestinidade com passagem prolongada e obrigatória por Caxias” e Sophia de Mello Breyner afirmava que ”Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo.”

Em Arouca, nos anos que precederam à Revolução dos Cravos liderava a Câmara Municipal, Joaquim Brandão de Almeida que por Decreto-Lei nº 236/74 de 3 de junho, foi exonerado do cargo, à semelhança do que aconteceu por todo país, “desmantelando toda a máquina fascista”, tal com é possível ler-se na “Defesa de Arouca” de 29 de junho de 1974. Contudo Brandão de Almeida sai por imposição e não por vontade popular, com quem tinha boa relação.

Armando Zola, jovem revolucionário da época, diz que “havia tristeza” durante o Estado Novo, “as pessoas não queriam a guerra, mas entendiam que a guerra era uma necessidade”, acrescentando que “a vida era muito difícil mas as pessoas se conformavam”.

Lembra as movimentações que se sentiram de imediato no 25 de abril, em Arouca, dizendo que quando chegou à vila, pela manhã, viu pessoas reunidas a ouvir a rádio, de onde chegavam as notícias de que algo se passava em Lisboa. Armando Zola afirma que “os movimentos não surgem se não houver causas, se não houver condições, como uma árvore que cresce”, dizendo que a investida do Movimento das Forças Armadas se deu porque havia um acumular de fatores que contribuíram para que a revolução se sucedesse.

A 18 de maio desse ano, o único meio de comunicação social arouquense da altura, noticiava que “Arouca disse sim à liberdade” lembrando o comício promovido pelo Centro Democrático de Arouca, na garagem da Feirense, onde o Dr. Arnaldo Lhamas afirmou que “a democracia, meus senhores, não é apenas liberdade política, não é apenas possibilidade de votar em quem se quiser. Não é só isso, é muitíssimo mais do que isso: é uma forma especial de viver, é uma forma especial de encarar os outros”.

A este juntaram-se, entre outras, as vozes de Armando Zola e Maria José Torres, diretora da Escola Preparatória, pedindo a ”extinção do Grémio da Lavoura e a sua transformação em sindicato de Agricultores” e a ”entrega do edifício onde funcionou a mini Ex – Legião Portuguesa e a extinção da cadeia comarcã para nele se instalarem os serviços do movimento democrático”, entre outras medidas.

No decreto-lei supracitado podia ler-se também que “as comissões administrativas (…) serão compostas por personalidades independentes ou pertencentes a grupos e correntes políticas que se identifiquem com o Programa do Movimento das Forças Armadas”.

É então que surge o nome de José Belém, professor primário na escola em Arouca. É admitido a 29 de outubro de 1974 pelo governador civil de Aveiro, Dr. António Neto Brandão, depois de um penoso processo burocrático que envolveu agentes locais em inúmeras reuniões. É nomeado por lhe ser reconhecida a integridade necessária para dirigir os desígnios do município em época de transição.

José Belém presidia a Comissão Administrativa em representação do Partido Socialista, bem como Cândido Brandão, Zeferino Brandão representava o Partido Popular Democrático (atual PSD), e Celso Portugal e José Vasco Correia, o Movimento Democrático Português /Comissão Democrática Eleitoral.

Na tomada de posse, José Belém fez apelo para a “compreensão e boa vontade de todo o Povo” afirmando que “ Nós não somos perfeitos. Certamente que iremos cometer muitos erros. Mas agradecemos que, quando eles surjam, pois nos façam a crítica, a tal crítica construtiva e não apenas a crítica destrutiva com o fim de denegrir, de achincalhar as pessoas que se esforçam por cumprir”, como é possível ler-se na “Defesa de Arouca”.

Aos 83 anos, José Belém recorda uma “época difícil” em que “não havia leis, não havia eletricidade, não havia nada” e era necessário “fazer o recenseamento e preparar as eleições”. Em Arouca “as pessoas eram ainda muito analfabetas” e o clero, tendencionalmente de direita, “exercia grande influência sobre as pessoas”, lembra.

Além disso, os municípios estavam totalmente dependentes do Estado Central, não havia autonomia financeira nem administrativa, não existia a lei das finanças locais e o acesso à educação era só para as famílias com mais possibilidades, o que mudou rapidamente com a Revolução dos Cravos.

A 12 de dezembro de 1976 realizaram-se as primeiras eleições livres e universais, sendo eleito para presidir aos destinos do Município de Arouca, Zeferino Brandão Almeida pelo PPD/PSD, numa Arouca que foi de direita até 1993, ano em que Armando Zola começou a liderança na Câmara Municipal.

Será abril sempre que sejam salvaguardados os direitos por ele conquistados. Será abril sempre que estiver “em cada esquina um amigo/ em cada rosto igualdade”. A história permite que saibamos o que queremos, a memória faz com que não se cometam os mesmos erros do passado.

Ary dos Santos um dia disse “Volta à barriga da terra/ que em boa hora o pariu/ agora ninguém mais cerra/ as portas que Abril abriu!”.


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