Foi a guerra que trouxe a Feira das Colheitas
Uma festa de lavradores que participavam nos diversos concursos, organizados pelo Grémio da Lavoura e mais tarde pela Cooperativa Agrícola de Arouca, é a base da mais emblemática festa de Arouca.
Idealizada e fundada por António de Almeida Brandão, a Feira das Colheitas teve a sua primeira edição a 22 de Outubro de 1944 e tinha como objetivo voltar a tornar Arouca uma terra dedicada ao trabalho agrícola e de acordo com o seu fundador era "imperioso estimular a produção de todos os cereais, sobretudo do milho, que é o de maior consumo na região" .
Durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal estava mergulhado no Estado Novo e assumia uma postura neutral em relação a esta, embora tivesse que suportar as terríveis consequências do conflito, de forma especial, no que dizia respeito ao abastecimento de géneros alimentícios e carburantes.
"Produzir e Poupar - dizia Salazar - livro-vos da guerra mas não vos livro da fome", quem o conta é a memória popular, calejada pelos tempos nefastos da guerra além-fronteiras.
Neste sentido, os Grémios da Lavoura e as próprias autarquias são chamadas a colaborar na regularização desses mesmos géneros, fazendo a distribuição pelas populações rurais.
O Grémio, na altura presidido por Almeida Brandão, decidiu promover diversos concursos, que desde o início tiveram o apoio financeiro do município de Arouca e de outras entidades. É traçado um plano em que constavam as tipologias dos concursos dinamizados. "Melhor Seara" (de milho, cevada e trigo), "Melhor Fruta", "Melhor Adega" e "Melhor Linho", juntamente com o concurso da " Raça Bovina Arouquesa", já existente no concelho, foram motivos mais do que suficientes para a criação do evento.
Atingindo o fim pretendido, o concurso da "melhor Seara" foi aquele que despertou o maior interesse, não só pelo aumento da produção mas pelo trocar de experiências entre os produtores.
Assente na Política do Espírito, característica do Estado Novo, eram imprescindíveis os movimentos culturais. Segundo esta política, estes movimentos deviam ser orientados no sentido de glorificar o regime e o seu chefe, conciliar as velhas tradições e os antigos valores com a modernidade daquele tempo e o programa cultural do regime procurava estabelecer uma cultura nacional e popular com base nas suas raízes e nos ideais do regime.
O principal objetivo dos governantes era tornar a cultura uma distração do povo e, deste modo, fazer com que este não pensasse naquilo que, segundo os membros do governo do Estado Novo, não era da sua competência.
Ficava então a faltar à festa, a vida tradicional e cultural e é neste sentido que ressurgem as verdadeiras atividades da aldeia, as desfolhadas, os linhares, as espadeladas, assim como a música e a dança, voltando as modas do cancioneiro popular No fundo faltava "fazer ressurgir as antigas tradições populares, assentes no puro regionalismo, quase desaparecidos ou em desuso há longos anos.", como é possível ler no jornal "Aveiro e o seu distrito" de dezembro de 1967.
Embora o caráter agropecuário tenha sido, sem dúvida, o impulsionador desta feira, rapidamente, e face à realidade nacional, ultrapassou esse caráter para fazer "ressurgir das cinzas do passado, os costumes, as danças, os cantares e o próprio traje, há muito em desuso", tal como diz Almeida Brandão na sua autobiografia publicada em 2000.
Desde a primeira edição da Feira das Colheitas, em 1944, que houve participação de grupos folclóricos, sendo notório o aumento de grupos de ano para ano. Nas primeiras edições da Feira das Colheitas, cinco freguesias deram corpo à manifestação deste ressurgimento do Folclore, tendo, nos anos seguintes propagando-se por todo o concelho a criação destes grupos.
A vontade de ressurgimento do Folclore por parte dos autarcas teve o seu auge, quando em 1948, na quinta edição de certame, é aprovado em ata de reunião de Câmara o pedido de apoio do Grémio da Lavoura para a organização da Feira das Colheitas, onde é visível, de forma evidente, a vontade de ver representada na feira, a cultura popular como uma das dimensões do certame.
Neste sentido, é aplicado ao folclore o mesmo formato que até aí era aplicado à produção agrícola, sendo premiados os Ranchos, "que se apresentem ao respetivo concurso, como meio de estimular o gosto pelo folclore regional", tal com expresso na Defesa de Arouca de 18 de setembro de 1948.
Era possível, de acordo com o regulamento, participar no concurso em três setores distintos: "trajo; danças tradicionais como o Vira, Chula, Tirana e semelhantes acompanhadas pelas respetivas rusgas, seus instrumentos típicos e cantadores; coros de linhares ou outros trabalhos agrícolas, à maneira de Cantas", conta a mesma fonte.
Os grupos de folclore que foram surgindo, tinham como objetivo a participação na Feira das Colheitas e eram organizados em cada freguesia a fim de mobilizar as populações para a participação dos ranchos no evento.
"Os filhos aprendiam com os pais a cantar e a dançar as lindas canções que andavam na boca de toda a gente, assim sendo, transmitidas de uns para os outros" de acordo com Almeida Brandão.
Além dos concursos, a Feira das Colheitas contou, desde o início, com a feira de artesanato e a exposição agrícola, que interessava a todos aqueles que se deslocavam à festa, para colaborar ou visitar. A somar a isso, também a desfolhada é um marco da Feira das Colheitas já que, na primeira edição da Feira, em 1944, o programa folclórico teve início com uma desfolhada e este foi o mote ideal para que nos anos vindouros a desfolhada fosse inserida na programação da feira.
É o culminar e a compensação de um ano a trabalhar no cultivo do milho e, nas palavras de António de Almeida Brandão, "a agricultura sente-se feliz ao contemplar as loiras searas".
Depois do desbrochar da espiga começa o baile, e com ele surge o "serandeiro" que para não ser reconhecido, aparece mascarado, e representa o homem que busca enamorar-se pela filha do lavrador.
Em, Arouca, o primeiro Cortejo dos Açafates, atualmente momento alto do último dia da Feira, outrora designado por "Cortejo das Oferendas" aconteceu a 13 de abril de 1958 e tinha como objetivo pagar 25% das despesas de construção e equipamento do novo hospital. Nesta altura não tinha qualquer relação com a Feira das Colheitas.
Havia emergência na construção de um novo hospital pois o velho, localizado junto ao mosteiro, não tinha condições para albergar os doentes da febre do minério e os acidentados nas minas.
A Misericórdia foi a impulsionadora da construção do hospital, à semelhança do que se passou por vários concelhos. Por todas as freguesias do concelho de Arouca foram constituídas comissões, "lideradas" pelo pároco e organizadas pela Santa Casa da Misericórdia de Arouca.
Após a inauguração do hospital, a 30 de março de 1960, o cortejo passou a integrar a Feira das Colheitas e ter-se-á mantido até à revolução de abril de 1974.
No ano de 2002 o cortejo de açafates foi recuperado e reintroduzido na Feira das Colheitas, desta vez com caráter simbólico.
É das atividades com mais população envolvida, quer a participar, quer a assistir.
Ainda neste Cortejo de Açafates está inserido o Desfile Etnográfico com Carros de Bois, nele estão presentes as alfaias agrícolas usadas no passado, o povo está trajado com aquele que é o traje regional e é feita uma mostra, pelas ruas da vila, de exemplares da raça arouquesa que puxam os carros que seguem carregados de produtos do campo.
Não podia faltar a vertente religiosa à Feira das Colheitas, atendendo à época em que esta é fundada, assente na lição de Salazar que consistia na trilogia da educação nacional: Deus, Pátria e Família.
Numa fase inicial, a religião era uma das vertentes da festa, associada à "Bênção dos Campos e do Gado". Era uma vertente pouco explorada, de certa forma relacionado com o facto de nesta altura ainda não ter a dimensão que foi ganho ao longo dos anos, perdendo-a para a festa de São Bartolomeu de Arouca, até então a principal festa do concelho, que se realizava a 24 de Agosto.
Com o engrandecimento da Feira das Colheitas, a Festa em Honra de S. Bartolomeu, começou a perder destaque sendo "absorvida" pela festa da lavoura anos mais tarde.
António de Almeida Brandão é o homem que fez a história Nasceu a 26 de abril de 1896 em Rossas, onde cresceu Formou-se em Teologia, no Porto e embora fosse muito católico não prosseguiu a vida eclesiástica.
Durante a sua vida ocupou diversos cargos políticos em Arouca, como presidente e vice - presidente do município e secretário de junta de freguesia de Rossas. Ocupou o cargo de presidente do Grémio da Lavoura de Arouca, diretor e gerente da Cooperativa Agrícola dos Produtores de Lacticínios, Mesário da Misericórdia de Arouca, diretor do jornal semanal "Defesa de Arouca", fundador e diretor do periódico "Defesa Agrícola" e órgão do Grémio da Lavoura, tendo sido o fundador, organizador e promotor da Feira das Colheitas.
É a ele e mais tarde ao seu filho, Elísio Azevedo, que se deve parte da grandiosidade da festa pois foi ele o entusiasta e o visionário numa época difícil da história e foi Elísio quem assumiu a responsabilidade da organização da Feira das Colheitas durante os anos em que esteve na Cooperativa Agrícola de Arouca, tendo nessa altura a Feira a duração de uma semana e era vocacionada para os agricultores, onde se juntavam momentos culturais.
Apenas no mandato de Armando Zola, a Câmara Municipal passou a assumir a organização do certame.
No ano de 1968 a realização da feira foi interrompida por ter sido um mau ano agrícola e de prejuízos O mesmo aconteceu em 1974 e 1975, desta vez a interrupção deveu-se à convulsão política e à extinção dos Grémios da Lavoura.
A Feira das Colheitas é uma verdadeira mostra da cultura popular. É uma manifestação cultural de louvar, onde a tradição, os usos e os costumes que dela fazem parte, se preservaram e conciliaram com a modernidade do século XXI Após 75 anos de existência, a Feira das Colheitas está viva e jovem, trazendo ao centro de Arouca forasteiros de todo o país.
Hoje, a grandiosidade da Feira deve-se ao facto de nunca se ter deixado morrer aquele que é um ex-líbris de Arouca. O povo sai à rua para festejar o fruto da terra e é na rua que se cruza com um passado bem presente.
Tal como referiu António Fernandes na sua obra, "a festa é a celebração da memória", enquanto houver memória existirá a Feira das Colheitas para celebrar Arouca, o seu povo e todos aqueles que por lá passam.
" (...) A Feira das Colheitas, afinal, é isto: ela é e significa a glorificação da Lavoura, o reconhecimento confessado e público pelo mérito dos Lavradores, pelas suas virtudes exemplares, pelo seu heróico e resignado sacrifício."
Esta é a identidade deste povo.